Cordão

Aqui se inventa um carnaval
e imaginamos entre anônimos
a cumplicidade da avenida suja
que ainda segue fechada,

mas silencia em retalhos
a impossibilidade dos nomes.
É a matéria-prima das máscaras
fiéis que velam os olhos acesos

que agora se permitem a fantasias.
Este samba, meu bem, é antigo.
Mas sob qual medida se canta
o que só existe em música?

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Cordão

Notas sobre o novo

Mas, ao final, todas as coisas eram muito difíceis de se dizer.

Não que eles se perdessem nas palavras. Não, não era nada disso. O preço de tudo aumentava, a vida no Rio era cara, Belo Horizonte continuava bairrista, aqueles artigos pareciam muito cansativos, o reconhecimento pela aprovação em uma prova era em tudo esvaziado. A vida, sim, desdobrava-se. Havia também a história e a piada toda da viagem, não conseguiam lidar muito bem com a voz mansa daquele que, de companheiro, apenas ajudava a pagar a gasolina. Era essa questão toda de sentir em casa. Os aluguéis subiam, mas os livros, os livros todos continuavam empilhados no quarto, porque a sala era dos outros. Esses, com que dividiam mesmo a sobrevivência, mas que, nessas manhãs todas, parecem quase lhes dizer, gritarem, do fracasso na tentativa de serem sinceros com eles mesmos.

Havia passado um tempo, muito tempo desde que o medo ainda não os visitava. O ano passado parecia ainda à espreita, como essas ervas cujas sementes parecem chegar do nada, carregadas por ventos, e se implantavam entre tantas mudas escolhidas enquanto projetavam sombras. Não podiam nunca arrancá-las, é certo, porque a proximidade com as outras mudas poderia destabilizar os ramos todos de alecrim e manjericão. Assim, aquelas plantas, aqueles anos, iam todos permanecendo ali, feito todas as coisas que, quando não se sabe resolvê-las, permanecem silenciosas acompanhando o corpo e reaparecem nas noites de escolha.

Com o tempo todo de distância, talvez o que ainda pudesse uni-los era, de fato, a angústia. Não essa angústia aguda, dos tristes, como uma vez escreveu Verlaine. Era a angústia de saber que o tempo também a eles alcançava, que estavam irremediavelmente adultos, que o tratamento nas ruas era mais formal que aquele em que se reconheciam e que, em breve, seria necessário pintar os cabelos. Ela pensava que isso pudesse, finalmente, ser algo em que a cumplicidade entre os dois pudesse existir. Chegara o tempo mesmo dos cansaços, em que a noite começava a aparecer somente para dormir e se trocava o dinheiro das viagens pelo os dos móveis. Era preciso medir a distância entre os lances da escada para saber se, de fato, por ali passariam os móveis. E ele, depois de muito tempo, começava a pensar que aquele encontro desconfortável era necessário. Necessário e preciso, como também o são as bulas de remédio.

Como essas peças mesmo do cotidiano, naquele dia se esbarraram com um artista e ambulante surdo-mudo. Aquele homem caminhava ali sempre, pelas ruas, carregando o atestado dos órgãos para que quem o visse não desconfiasse. Com a atenção e a sensibilidade daqueles que apenas tem intimidade com o silêncio, andava pelo centro da cidade apontando para aquilo que pudesse ter alguma história. Aproximou-se dos dois, levantou o cardápio, apontava para o papel, para eles, para si. Parecia sugerir a ele que deixasse os bigodes crescer, para que os tivesse atemporais, para que nos momentos em que lhe escapasse a palavra, pudesse levar as mãos aos lábios superiores e demorar-se ali, na moldura das letras. Apontou, também, para os olhos dela que sempre se enrrugavam muito em momentos de euforia e vergonha, quando o riso lhe rasgava os lábios e os olhos pareciam fazer uma ligeira resistência para que ainda não desaparecessem da realidade. Apontar para os olhos e para o corpo deve ser o maior elogio possível nessas condições, pensou ela. Alguns minutos depois,o estranho sugeriu e perguntou mesmo se os dois se acompanhavam. Ele, em segurança, disse que não, mas não soube bem lidar com os gestos. E ela pensou pensou que, se a palavra não chega aos surdos, de nada vale.

Pouco tempo depois começou a chover e tiveram que sair dali. Era como se a rua mesmo se fechasse e fosse preciso voltar cedo. Por muitos anos, subir Bahia, descer Floresta e atravessar a Afonso Pena tinha permanecido como o maior símbolo da liberdade. Mas agora não mais. Hoje os bares se fechavam, a rua mesmo estava trancada, e a possibilidade do mistério parecia impraticável.

Indo, ao final, ao caminho de volta, ela tentou, com os membros, a conversa que não conseguiram antes. Chovia muito, mas ele se afastou do guarda-chuva que até dividiam e foi para debaixo da marquise, rindo e dizendo que o desajeito dela piorava depois daquelas cervejas. Sabendo que logo partiria, pois era tarde, era sempre tarde, ela tentou ainda dizer aquilo que era urgente. Aquilo que nenhum dos dois sabia ao certo organizar em frases. As narrativas todas eram inventadas e, ao final, eram tão bonitas porque eram impraticáveis. A sensualidade, porém,  não poderia nunca se transformar em palavras. Porque, se assim fosse feito, tornar-se-ia subordinada aos preceitos mesmo da realidade, que sufocam os corpos. Havia tanto a se dizer. As noites tinham sido poucas, o tempo tinha sido o do progresso, a intimidade interrompida. Mas, sobre eles, o peso mesmo do real já se abatera e a única ficção possível era crer que, um dia, ainda aprenderiam e teriam a coragem certa para dizer. Embora ela já fosse embora para longe, como a única liberdade possível aos homens, e carregasse, em si, as histórias imaginadas.

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Notas sobre o novo

Como animais fantásticos

    Eu queria ser protagonista das grandes histórias. Mal sabia eu que as grandes histórias só eram vividas pelos heróis. E eu não era Robison Crusoé e mal conseguia lidar com os fantasmas das sete horas. Meu trabalho mal dizia de mim e como era difícil fazer um tapete permanecer liso e esticado no chão. Pensava que os tapetes eram como esperávamos mesmo das coisas e circunstâncias, em que ainda era possível colocar os dois pés com segurança, arrastá-los na extensão dos dois lados e limpá-los até que fosse retirado todo o barro. Até que pudéssemos descansar e toda terra e poeira do mundo ficasse lá fora, com os outros, e a nós fosse permitida e concedida a alegria de entrar em casa trazendo apenas pés descalços. Assim, descalços, como os tem as crianças que nada pensam do mundo e parecem, por instinto ou rebeldia (talvez ambos), colocarem os dois pés na terra para entenderem os segredos secretos que só as raízes e as formigas conhecem.

      Minha mãe dizia sempre que eu, ao passar por tapetes, lembrava muito ao meu avô materno. Embora eu nunca o tenha conhecido, minha mãe dizia sempre que esse hábito de passar por tapetes e ter uma dificuldade tremenda para apenas atravessá-los e não postar os pés assim, pesados, como se eu portasse um grosso par de botas de couro que carregasse e embolasse os tapetes, era a semelhança que nos unia. Minha mãe dizia sempre que, ao contrário dele, eu tinha as pernas sadias e livres, não precisava carregava tapetes, eu podia apenas atravessá-los. Eu nada dizia, ouvia silenciosa, mas pensando o que significaria mesmo esse hábito de carregar tapetes e que, embora com pouca idade, o mundo já pesava tanto que movimentar-se parecia impossível senão pelo arrastar das pernas.

     Outra vantagem das pernas que se arrastavam talvez fosse a de criar uma segurança maior que aquela oferecida pelas pegadas. Penso que, em um grande areal ou o meio de dunas brancas, aqueles que arrastassem as pernas não teriam pegadas, mas trilhas. Trilhas e caminhos definidos, assim, fundos na terra,  onde, quem sabe, quando chovesse pudessem se tornar robustos leitos de rios. As pegadas, porém, talvez se misturassem com todas aquelas dos animais que também passavam por ali ou, como são mais leves, seriam levadas pelos ventos, encheriam-se de pedras e conchinhas com o tempo. Mas isso de pisar muito firme e arrastar os pés vai lhe fazer sempre pisar torto, dizia minha mãe, muito preocupada como eu poderia andar quando o passar do tempo já não fosse invisível. Eu não sabia responder, não saberia, pois para mim o passar do tempo já deixara de ser invisível há muitos anos. Quando vinha o sol e ele refletia nos meus cabelos, eu já sabia bem que não se tratavam de reflexos inocentes, mas da luz que expunha, quase dissecava, os meus cabelos brancos que cresciam sem controle.

     Achava, ao final, que era isso. A forma toda com a vida adulta me assaltava era a perda do controle. Não era como o medo. Não se tratava mais de enfrentar fantasmas. Lembrava dos anos recentes da juventude, quando era possível identificar e superar o mundo porque eram visíveis os limites claros onde a coragem penetrava ou não. Era um mundo concentrado no homem antigo, como se pensássemos ainda na Terra plana, sustentada por troncos ou por animais muito mais perigosos e fantásticos do que nós. Agora, o mundo inteiro girava, tínhamos órbitas muito definidas e, embora ele fosse muito maior e quente do que nós, era preciso girar em torno do sol. E torcer para que, ao arrastar os pés, não nos tornássemos tontos ao ponto de cair.

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Como animais fantásticos

Outubro

Agora que eu entendo o sentido de nascer,
sei que é precedido por algumas mortes
e clareia nos olhos quando é possível
enxergar as fronteiras dos sonhos e da fé:

estão muito próximas ao tempo e ao desejo,
como esse bilhetes deixados nesta mesa
para lembrar de tudo que esquecemos.
Este ano não atravessamos a terra e o mar

cingiu-se como era esperado à juventude.
Onde se guardaram aquelas três palavras
capazes de nos conduzir outra vez à casa?
Como é possível que nasça qualquer poema

se nos perdemos no corpo e em toda noite
há o cansaço e a certeza dos vencidos?
Nos últimos anos, abrigamo-nos na poesia
e, quando houve sorte, corremos na rua.

Agora não há nada e escrevemos o epitáfio
de uma manhã perdida e inútil da primavera,
da imagem que é apenas a fuga e a solidão,
de um pombo morto em meio a vidro e vinho.

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Outubro

A propósito do sentido do nascer

       Lembro-me que, no auge da adolescência, com 16 e 17 anos, conheci a obra de Herman Hesse e esse autor tornou-se o espaço e quem parecia entender mais do que se passava comigo que era possível suspeitar. Naquela época, “O sonho de uma flauta” e “O lobo da estepe” foram as obras em que permaneciam latentes alguma coisa não dita, a possibilidade de viver o mundo como desejavam os sentimentos menos lápidos e onde ainda eram possíveis fábulas. Nos anos seguintes, continuei buscando os livros desse autor alemão que parecia, como eu, ter buscas de complicada definição, as quais o conduziam não somente à uma mudança de territórios constante, mas, também, à inconstância profissional. Hesse foi seminarista, livreiro, operário. Em determinado momento, decidiu dedicar-se à literatura, utilizando a formação cultural autoditata como instrumento para a escrita.

       Eu o conheci por meio de um amigo que, embora se sentisse deslocado como todo adolescente, estava longe de propor qualquer forma de rompimento com a sociedade que o incomodava. Para a gente, era como se ler Hesse fosse a maneira de conseguir, de alguma forma, manter fugas para respirar em bosques enquanto a vida se acelerava. Apenas alguns anos depois, li que Herman Hesse é considerado um “guru dos hippies”. Neste ano, essa perspectiva se exemplificou, quando comprei “O livro das fábulas” de mais um viajante que vendia livros e pulseiras para continuar o percurso – talvez em direção a si, talvez ao avesso do eu escondido no mundo. “Livro raro, não tem na Estante Virtual!”, ele disse, enquanto recusava a minha barganha de um preço mais baixo, tendo em vista que a lombada do livro já se encontrava muito gasta pelo efeito das traças e do tempo. Levei o exemplar comigo, mas, passado três meses, ainda não consegui lê-lo. De qualquer maneira, comprar aquele livro depois de anos sem que Hesse fosse um dos meus autores de cabeceira, lembrou-me de como se alterou a minha perspectiva dos tempos quando eu o conheci para aquela que eu tenho hoje. Dizendo deste mundo, concluo que eu ainda não nasci. Ainda estou na fronteira entre tornar a ser e ter consciência e fruição dos dias que passam.

      Pensei nisso lembrando de um trecho de “Demian”, outro livro de Hesse que guardo na memória. Há um trecho que diz  “Queria apenas tentar viver aquilo que brotava espontaneamente de mim. Por que isso me era tão difícil?[…] Quem quiser nascer tem que destruir um mundo; destruir no sentido de romper com o passado e as tradições já mortas, desvincular-se do meio excessivamente cômodo e seguro da infância para a conseqüente dolorosa busca da própria razão do existir: ser é ousar ser”. Li isso pela primeira vez aos 19 anos, quando a aplicabilidade parecia simples e possível como os gestos que construía acreditando que era apenas necessário trabalhar o funcionamento dos sentidos para que estivessem atentos e libertos para serem afetados pelo mecanismo da vida para alcançar a resposta. Hoje, quando leio esse trecho, é quase inevitável não lembrar os momentos em que rio e acho graça sempre quando falo de efeitos de meditação com algum amigo mais cético. E percebo como em mim mesma já há o alicerce sólido de um ceticismo implantado pela idade. Ou, talvez, pelo início da maturidade, percebo que a destruição do mundo não é o instrumento mais inteligente ou preciso para o nascimento.

       O passado e as tradições mortas se, de alguma forma, assombram o que fomos, são o pouco de conhecimento que podemos dominar com alguma segurança. Tenho hábitos muito claros de não deixar que a palavra não dita permaneça flutuando no ar, que, naquela cidade, eu não guarde como recordação o receio de atravessar a rua, que um gesto de desejo não permaneça estático por espessas camadas do medo. Por essas fotografias, vejo que mudei a minha aparência e o que externava aos outros, percorri mares distantes que acreditei terem marés promissoras e mesmo apostei em ter a certeza de olhos brilhantes em meio ao deserto e a noite como o suficiente. No entanto, o conceito de infância é – e sempre foi – algo de difícil definição para mim. Hoje, nos primeiros anos da vida adulta, percebo bastante inaptidão para estar, diariamente, tomando decisões cegas, embora as consequêcias que as acompanham sejam definitivas, e penso muito sobre como pareço despreparada para estar no tempo em que vivo. Conversando com outros amigos mais velhos que eu, vejo que esse sentimento é recorrente e que, de alguma maneira, muitos seguem sem saber como o fazem. Assim, creio em infâncias recorrentes, na medida em que, ainda que vivamos, há sempre a necessidade de aprender, uma vez mais, como não cair e ralar o joelho enquanto corremos sobre brita.

      No início do ano, ganhei uma muda de tomates cerejas de uma amiga. Era um vasinho preto com oito centímetros de altura, do qual saía um raminho fino, de seis centímetros, onde brotavam duas folhas minúsculas. Nesta semana, vi o pé com mais de um metro e meio de altura e colhi três tomates. Acho que finalmente entendi o sentido de nascer. É fixar no tempo próprio de onde nos apresentam a terra, onde a liberdade é a apreensão de fontes simples, mas inesgotáveis, por pertencerem ao solo. Ao solo, onde cabe aos pés reconhecer limites, extremidades e cansaço. Neste solo que, em dias de chuvas, torna-se muito difícil deixar pegadas sem que levemos barro junto a nós. Penso agora que a maior ousadia possível seja não temer às nossas raízes e deixar visível o que cresce de nós. E que antes da destruição, nascer signifique o reconhecimento do mundo. Este mundo que, na beira do nosso quintal, pode guardar todo o sentido da existência.

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A propósito do sentido do nascer

Ao acesso possível apenas pela perda.

E que se possa, apenas com o olhar, alcançar a demarcação das horas da noite e àquelas referentes ao dia. Esse é um dos maiores desejos. São possíveis diversos naufrágios, mas naquele que se impõe a quem, pela doença, não poder ver janelas e sabe das horas apenas o número que as enumeram, acumulam-se camadas muito espessas de nuvens. A ordem do corpo é outra: não é possível apenas reagirmos ao sol que cai e pede sono ou a aurora que sugere, talvez, seja necessário lavar o rosto. Implantam-se outras engenharias: é preciso apenas não atingir a morte. Mas todas as miudezas, aquelas que nos conduzem a querer amarrar os cabelos, cortar as unhas ou escolher uma nova cor de batom, são subtraídas. A um hospital, é suficiente a sobrevivência. Eu, quem levo sempre meandros e papéis no bolso, sei de doenças aquelas como fruto do tédio dos olhos que, nesta esquina, se escolhem apenas o caminho da direção final, perdem a maravilha de observar um pedaço de mundo suspenso, porque não pertence a nenhuma rua.

À fragilidade que nos impõe o corpo, outras armaduras são lançadas: a voz que nos visita de longe, a cordialidade de anônimos, a surpresa ao ver que colorir um desenho industrial feito pelo outro pode se tornar um dos maiores prazeres. Quando se pensa que somos as histórias que contamos, suspender o cotidiano que nos sustenta e, como conforto, ofertar horas de esperança, é doloroso. Pisar em qualquer pedaço de asfalto e ver que, do outro lado da rua, alguém cata papel, outra pessoa anda correndo enquanto come, uma criança  mastiga chicletes ruidosamente é ver que o mundo, o grande mundo, ainda cresce entre o ódio e o amor. Condicionada a uma estreita janela que não se abre totalmente, alguma vista do mundo que se estabelece em cárcere apenas nos conduz a olhar para dentro. E, como estantes que guardam muitos livros bons que nunca lemos, descobrimos que as certezas e as sabedorias que organizamos são menos acessíveis do que o previsto.

Da lembrança das noites de febre, guardo carinho e gratidão por enfermeiros que, provavelmente, nunca mais verei, mas cujos gestos permitem que eu escreva essas memórias. Das tardes de calma, há a febre dos amores que se perdem por serem vivos. E, na perspectiva de quem cessa cachoeiras internas, precisam ir embora diante de mãos ressecadas. Não sou de muita idade, mas, por experiências nos ombros, percebo o equilíbrio muito frágil que existe entre o momento que agimos e escolhemos e as esferas onde a vida surpreende, confunde, encanta, adoece e, em momentos dóceis, nos lembra que somos humanos. O contato e a presença da morte retomam algo que o apelo ao desenvolvimento e ao crescimento nos nega: não somos o que levamos na algibeira, as palavras esculpidas ou os méritos que pleiteamos. Ainda que se negue, temos corpo e mente que apenas existem enquanto há troca e, enquanto há afeto, há vida. Ainda se quisermos dizer por vasos sanguíneos, canais, tecidos, órgãos, a fragilidade alcança e é impossível retornar às ilhas de segurança sem tutorais de porto. Conhecedora de euforias e intensidades há anos, vejo ainda mais como essas palavras não se distanciam muito do mundo: escolho-as para serem índices, para organizar, para agarrar belezas, mas nunca serão minhas. São, como a dinâmica própria das coisas, dotadas de mecanismos que não cabe a mim entender ou tentar organizar. Apenas posso, nas tardes de sobriedade, torcer para que permaneça sempre a aprendizagem da tolerância, para que eu me arrisque a um verso de amor e que, cansada, ainda tenha alguma curiosidade, espanto e saudade.

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Ao acesso possível apenas pela perda.

Gaveta

    Arrumando algumas caixas esquecidas no canto do armário, encontrei uma foto antiga que havia comprado em um bazar. Sempre tive um estranho prazer por comprar fotos antigas de anônimos. Com aquele pedaço de memória que não me pertencia, eu parecia ter, no presente, qualquer convite para reinventar o passado. Naquelas imagens, havia o fragmento do real que eu nunca havia vivido. Havia o rosto e ação de alguém que jamais conheceu a mim. No entanto, ali, em minhas mãos, todas aquelas imagens tinham a história eternizada na fotografia reinventada por minhas hipóteses e ficções. E, assim, como o lapso, um trapaça com o tempo, voltavam a viver outra vez no presente. Havia uma série que eu gostava muito. Era de uma senhora que aparentava ter trinta, trinta e cinco anos e sempre tirava as fotos de perfil, mas sem nenhuma expressão no rosto. Sempre. Aparecia na praia, no campo, na sala de jantar, no meio de uma estrada, com o rosto de perfil, olhando para algo que o campo de visão oferecido pela foto não permitia enxergar.  E sempre tinha a mesma expressão. Era como se, dali de onde ela estava e vivia, fosse possível observar, com aqueles olhos muito fundos e distantes, na realidade o que ali não estava. Como se, não se permitindo nunca fotografar de frente, houvesse alguma parte de sua vida que se permitia ser maior que o fantasma do real que a imagem oferece.

    Porém, existia uma foto que era diferente. Uma só foto que destoava de todas as outras. Trajando um vestido preto, um casaco preto e um chapéu preto, essa mulher olhava diretamente para a câmera e tinha, nos olhos, não a confiança que aparentava nas outras fotografias. Mas apenas um susto, uma forma atônita de quem não sabia onde mais olhar,  um rio que, na estiagem, tinha mais leito para afluentes, mas se esquecera de como correr. Sozinha, a mulher ficava parada ali, olhando para a câmera como, se finalmente, tivesse entendido que pouco adiantava lutar contra as imagens. Olhando assim, era como se, apenas olhando para frente, fosse possível trespassar a câmera e atingir, por detrás dela, algo que não fosse uma lasca do real e do tempo. Era como se a morte, se o luto, desse a liberdade de poder ter, do rosto, não uma metade representada. Mas o rosto todo ali, inteiro, de frente para o que ainda fosse possível do mundo.

    Reencontrei essa foto em um momento em que a questão do luto tornou-se algo presente nos dias e para ser pensada no tempo. Olho para mim e, mesmo que esteja carregando tantas mortes no peito e na mente, continuo caminhando, correndo, cansando como se não houvesse nada. Visto as mesmas roupas, cruzo as mesmas ruas, sinto as mesmas fomes, converso dos mesmos temas e até mesmos os refúgios não se transformam. Ao olhar essa senhora perdida no tempo, com trajes pretos, penso se eu não deveria fazer o mesmo. Parar, alterar, repousar e, quem sabe, conseguir estancar o que ainda chove através desse rasgo de morte. Algumas vezes, penso que o tempo em que vivemos não nos favorece a vivência do que, talvez, fosse necessário ao luto. Por despreparo, medo ou, talvez, cansaço, perde-se a oportunidade de alterar o que, em nós, persiste vivo enquanto tanta fé definha. Talvez, as mortes que nos atinjam em vida, que não nos levam, mas apenas nos desgastam, sejam onde mesmo persista o nascimento. São caminhos de espinhos, muitas vezes. Por agora, por exemplo, olho para mim e, como alguém a tentar reinventar histórias para fotografias anônimas, questiono como vivi, não sabendo onde se guardam as experiências que já deviam ter me ensinado tanto. Como essas fotografias tomadas com a velocidade do obturador muito baixa, tenho rastros de gestos que nunca se concretizaram, mas também não se foram. Tenho nessa imagem apenas erros, manchas e borrões.  As mortes que guardo em mim dos que ainda são vivos instauram plataformas de não-lugares e de suspensão no tempo, pelas quais assisto vídeos e vídeos de memórias que nunca existiram. Enquanto ainda não consigo nem superar a morte, nem outra vez me lançar à vida, aqui me guardo, como alguém que, olhando de perfil, talvez possa revelar outra metade onde ainda resida e reexista todo o segredo do bem viver. Por enquanto, não esqueço, não lembro, não ando. Apenas fico a imaginar todas as fotografias jamais tiradas e, pela imagem que falta, construo histórias onde o passado é de novo presente, mas repaginado por ficções de gaveta.

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Gaveta

Como um ipê rosa

Hoje, caminhando pela Praça Floriano Peixoto, vi o último ramo de folhas que se prendia a uma árvore de ipê rosa. Ali, como o último pulmão que, com folhas que ainda transpiravam, era a resistência daquilo que ainda não era rosa.

Gosto de pensar que, talvez, a nossa existência seja também como um ipê rosa. Em plena primavera, talvez não possa haver senão tímidas e remanescentes flores. Mas, com o advento do inverno, poderão, enfim, florir. Mesmo que, para isso, percam todas as suas folhas. É como se, na estação em que os recursos são escassos, uma planta tenha entendido  quando é preciso resistir. Ou persistir. A resistência, porém, não é uma escolha imediata ou pouco custosa. Para que exista, é preciso perder folhas e não deixar na pontas dos dedos nada além do que, por ser flor, tenha alguma estrutura para o fruto.

E é preciso florir. É preciso ter qualquer coisa nova, porque toda a vida prosseguirá na iniciativa daqueles que ainda correm nas praças, que ainda se sentam e descansam, que, atrasados para o trabalho, olham para algo mais alto. Pelo diálogo com outro, talvez possamos imaginar outras formas de conduzir descansos compartilhados de beleza no inverno.

Aprender a construir belezas e a permanecer não é um processo fácil. Todos os dias amanhecem como lobos a espreitar a porta de toda esperança. Algumas vezes, as costas doerão, o lábio superior esquerdo tremerá de forma voluntária, como consequência do estresse voluntário. Outras vezes, o efeito dos fatos e de todo os afetos não poderá ser guardado apenas dentro de nós e, pelo peso, cairá como pétalas rosas no ombros daqueles que passeiam na rua. Nesses processo, a lembrança maior é que, algumas  de nossas medidas são mensuráveis. A medida da fome, do sono, da dor de uma queimadura, por exemplo. Essas medidas são alguns dos basilares para a aprendizagem necessária ao crescimento para ser, com o nosso corpo e mente, humanos. Ao final, talvez possamos entender outras formas de conceber a primavera que, por enquanto, apenas representa espera. E, quando for inverno, levantar os braços em praça pública e, com as raízes firmes no chão, não ter senão flores rosas nas mãos. E sombra frescas aos pés.

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Como um ipê rosa

Couro sintético

E, por isso, meu chapa, que esta barra pese. Que a gente se ouça e se estranhe:  pode-se mesmo escrever em guardanapo? Que a gente sente, acenda um cigarro e fique muito tempo apenas olhando. Apenas olhando. Como se o que ainda conseguimos entender do mundo não pudesse ser dito. Apenas permanecer ali, sob a confusão dos olhos.  E que a gente beba, de uma só vez, uma garrafa de limonada. E saiba que há sedes que são mais agudas que as de limonada. Meu camarada, o que você conta, com estas olheiras, essa mão que se estende para pedir abrigo, sou eu mesmo que aprendi a contar estrelas para tentar na noite construir toda ordem do mundo. Antes, eu escrevia e riscava muitos tracinhos em folhas de papel – que me doíam as falanges e me deixavam tonto.  Agora, aprendi a contar estrelas. Elas nunca vão acabar e, de alguma forma, me fazem cansar olhando algo que é maior que eu. Algo lá no alto, inalcançável. E eu vejo, meu irmãozinho, que nossas confusões são como algumas estrelas: embora não existam mais, permanecem irradiando e voltando todas as noites. A gente devia viajar, meu irmão. Ir como  naquela estrada em que nos conhecemos, ainda por termos gin, e você, com alguns fiapos de couro rasgado nos ombros, ter me dito que era couro sintético. Eu nunca entendi o significado de couro sintético. Aprendi, ainda na roça, que a gente usa couro porque dura muito e protege. Você me disse que gostava da vida dos animais. Eu não entendi, mas fiquei achando que ter coisas que não duravam muito fosse uma coisa boa para a vida. Dos animais ou  da nossa. Até que um dia você veio, me mostrou um bilhete amassado e me perguntou por que as coisas não duravam para sempre. Eu não soube o que dizer, nunca soube enfeitar palavras muito  bem. Então eu disse que nem tudo era de couro. Eu lembro como, depois, lhe vi tocando tamborim e cantando sem nunca ter gostado de samba. Era carnaval e você, como eu, sempre precisou de algo entre a realidade e a fantasia. Mesmo quando eu comecei a aprender todos os nomes, disse com muito desânimo daquela dor na coluna que não passava, mas só chegava quando eu não sabia muito bem como sustentar os ombros. Por sermos assim, cheio de arestas e faltas, chegamos neste diálogo da busca, meu camarada. Nenhum de nós sabe, mas que é bom é ainda poder senti-lo. E o copo é sempre meio cheio, meu amigo.

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Couro sintético

Em frente

Por vezes, surpreendo-me lendo o que eu escrevia aos dezesseis anos. Vez ou outra, impressiona-me como, naquela época, eu parecia ter tanta certeza do mundo. Algumas vezes, sinto falta da segurança e do sentimento de plenitude que eu tinha naquela época. Ao final, acho que são apenas os adolescentes que conseguem ser absolutos. Neles, a incompreensão, a turbulência e a fé não são conflituosos. Apenas permanecem ali, guardados em camadas que o mundo onde eles não se reconhecem não pode ver. Porque, nessa altura, eles ainda podem sobreviver pela procura dos nomes – e escolherem não encontrá-los.

Em algumas terças-feiras, gostaria de, como outras vezes, oferecer um ombro, alguma frase de consolo, alguma certeza a quem me procurasse. Aos 16, 17, era como se a carência de vivências me permitisse saber muito do mundo. Hoje, alguns anos depois, percebo a veracidade e a vivacidade de Balzac ao dizer “Passamos a vida adulta tentando encontrar o que atingimos na adolescência. Essa operação se chama adquirir experiência”. Operação complicada, devo dizer. Tornar-se experiente em qualquer esfera desta vida é passar por um processo de crescimento que, na maior parte dos casos, apenas acontece por tentativa e erro. E, quando há sorte, algum acerto.

Algumas evoluções são mais lentas que gostaríamos. E, na maior parte dos casos, são essas as quais mais precisamos. É possível tentar munirmos de algumas ferramentas para tentar acelerá-las: minimizar o tempo que temos em silêncio, evitar adjetivos, camuflar desejos, drenar lágrimas. É curioso, porém, que seja em algumas das circunstâncias em que construímos nossas fortalezas em que resida a parte de nós ainda em processo de evolução. O caminho para encarar os medos que nos atrapalham – o do reconhecimento, o da solidão, o da perda, o do esquecimento – carrega sempre espinhos que, talvez, não possam ser enfrentados com os pés nus. Mas, por outro lado, sempre nos traz alguma motivo para, amanhã, tentar outra vez.

Por mais difícil que seja aceitar, talvez seja necessário muito tempo de solidão. E o será por mais alguns anos. Gostaria, quem sabe, de ter encontrado o livro certo, o filme certo ou a conversa certa que pudessem ter direcionado o gesto errante de se aprender com a experiência. De conseguir poder estar com outros e comigo da forma mais altiva possível. De apenas estar ali e compartilhar algum pouco de alegria e fraternidade, sem colocar as minhas próprias rachaduras nas frestas das buscas dos outros.  Mas, na maior parte dos casos, isso não é possível. É apenas possível que eu esteja ali, com a humanidade ainda em construção, e que, como outros irmãos, acredite outra vez na reinvenção de formas de interagir com os que nos são caros e com nossas expectativas de futuro.

Todos que encontramos algo nos deixam e muito de nós levam. Aqueles que, muitas vezes por motivos desconhecidos, escolheram permanecer deste lado da estrada sempre oferecem girassóis que apontam para outras estrelas e, assim, lembram que a busca é necessária. Assim, mesmo que pouco saibamos, há em nós a procura por entender – ou, finalmente, render-se à não compreensão e aos sentidos. Aqueles que nos concedem, de alguma forma, a gentileza da troca, da partilha, da entrega e da escuta nos guiam outra vez a essa escolha que ilumina: juntos, escavaremos esta terra para que se torne fofa.

Muitos outros seguiram caminhos opostos em bifurcações e, embora tenham partido, sempre estarão presentes. São importantes todos os que nos ensinam quão difícil pode ser dizer adeus, mas, por essas razões, nos dotam do crescimento para não deixar de celebrar enquanto há afeto. E que nossas ações e caminhos são mortais. Como também é o nosso corpo.  Aos poucos, tenho aprendido a agradecer a todos os que não puderam aqui continuar, porque iam a outras buscas. É o exercício de ser e se tornar maior que o tempo: se aprendemos pela experiência, há pouca repetição e semelhanças na realidade. Mas, por outro lado, vamos sempre de olhos virgens, cientes que, por mais que tentamos, há limites que nossa trajetória impõem. E é justamente por essa razão que não nos é permitido qualquer tipo de desistência. Apenas esperança.

SC

Em frente