Mas, ao final, todas as coisas eram muito difíceis de se dizer.
Não que eles se perdessem nas palavras. Não, não era nada disso. O preço de tudo aumentava, a vida no Rio era cara, Belo Horizonte continuava bairrista, aqueles artigos pareciam muito cansativos, o reconhecimento pela aprovação em uma prova era em tudo esvaziado. A vida, sim, desdobrava-se. Havia também a história e a piada toda da viagem, não conseguiam lidar muito bem com a voz mansa daquele que, de companheiro, apenas ajudava a pagar a gasolina. Era essa questão toda de sentir em casa. Os aluguéis subiam, mas os livros, os livros todos continuavam empilhados no quarto, porque a sala era dos outros. Esses, com que dividiam mesmo a sobrevivência, mas que, nessas manhãs todas, parecem quase lhes dizer, gritarem, do fracasso na tentativa de serem sinceros com eles mesmos.
Havia passado um tempo, muito tempo desde que o medo ainda não os visitava. O ano passado parecia ainda à espreita, como essas ervas cujas sementes parecem chegar do nada, carregadas por ventos, e se implantavam entre tantas mudas escolhidas enquanto projetavam sombras. Não podiam nunca arrancá-las, é certo, porque a proximidade com as outras mudas poderia destabilizar os ramos todos de alecrim e manjericão. Assim, aquelas plantas, aqueles anos, iam todos permanecendo ali, feito todas as coisas que, quando não se sabe resolvê-las, permanecem silenciosas acompanhando o corpo e reaparecem nas noites de escolha.
Com o tempo todo de distância, talvez o que ainda pudesse uni-los era, de fato, a angústia. Não essa angústia aguda, dos tristes, como uma vez escreveu Verlaine. Era a angústia de saber que o tempo também a eles alcançava, que estavam irremediavelmente adultos, que o tratamento nas ruas era mais formal que aquele em que se reconheciam e que, em breve, seria necessário pintar os cabelos. Ela pensava que isso pudesse, finalmente, ser algo em que a cumplicidade entre os dois pudesse existir. Chegara o tempo mesmo dos cansaços, em que a noite começava a aparecer somente para dormir e se trocava o dinheiro das viagens pelo os dos móveis. Era preciso medir a distância entre os lances da escada para saber se, de fato, por ali passariam os móveis. E ele, depois de muito tempo, começava a pensar que aquele encontro desconfortável era necessário. Necessário e preciso, como também o são as bulas de remédio.
Como essas peças mesmo do cotidiano, naquele dia se esbarraram com um artista e ambulante surdo-mudo. Aquele homem caminhava ali sempre, pelas ruas, carregando o atestado dos órgãos para que quem o visse não desconfiasse. Com a atenção e a sensibilidade daqueles que apenas tem intimidade com o silêncio, andava pelo centro da cidade apontando para aquilo que pudesse ter alguma história. Aproximou-se dos dois, levantou o cardápio, apontava para o papel, para eles, para si. Parecia sugerir a ele que deixasse os bigodes crescer, para que os tivesse atemporais, para que nos momentos em que lhe escapasse a palavra, pudesse levar as mãos aos lábios superiores e demorar-se ali, na moldura das letras. Apontou, também, para os olhos dela que sempre se enrrugavam muito em momentos de euforia e vergonha, quando o riso lhe rasgava os lábios e os olhos pareciam fazer uma ligeira resistência para que ainda não desaparecessem da realidade. Apontar para os olhos e para o corpo deve ser o maior elogio possível nessas condições, pensou ela. Alguns minutos depois,o estranho sugeriu e perguntou mesmo se os dois se acompanhavam. Ele, em segurança, disse que não, mas não soube bem lidar com os gestos. E ela pensou pensou que, se a palavra não chega aos surdos, de nada vale.
Pouco tempo depois começou a chover e tiveram que sair dali. Era como se a rua mesmo se fechasse e fosse preciso voltar cedo. Por muitos anos, subir Bahia, descer Floresta e atravessar a Afonso Pena tinha permanecido como o maior símbolo da liberdade. Mas agora não mais. Hoje os bares se fechavam, a rua mesmo estava trancada, e a possibilidade do mistério parecia impraticável.
Indo, ao final, ao caminho de volta, ela tentou, com os membros, a conversa que não conseguiram antes. Chovia muito, mas ele se afastou do guarda-chuva que até dividiam e foi para debaixo da marquise, rindo e dizendo que o desajeito dela piorava depois daquelas cervejas. Sabendo que logo partiria, pois era tarde, era sempre tarde, ela tentou ainda dizer aquilo que era urgente. Aquilo que nenhum dos dois sabia ao certo organizar em frases. As narrativas todas eram inventadas e, ao final, eram tão bonitas porque eram impraticáveis. A sensualidade, porém, não poderia nunca se transformar em palavras. Porque, se assim fosse feito, tornar-se-ia subordinada aos preceitos mesmo da realidade, que sufocam os corpos. Havia tanto a se dizer. As noites tinham sido poucas, o tempo tinha sido o do progresso, a intimidade interrompida. Mas, sobre eles, o peso mesmo do real já se abatera e a única ficção possível era crer que, um dia, ainda aprenderiam e teriam a coragem certa para dizer. Embora ela já fosse embora para longe, como a única liberdade possível aos homens, e carregasse, em si, as histórias imaginadas.