Notas de um carnaval qualquer ou como cultivar plantas em vasos de plástico

          Em “Invenção de Orfeu”,  Jorge de Lima escreve e alerta-nos: “Há sempre um copo de mar para um homem navegar”. Movida pela crença na esperança em terras em que ondas e costa sejam impossíveis, mas não cessem o movimento próprio dos homens em barcos, esse verso talvez nos ajude a entender como se constituem e reverberam as cenas de “Urgente”. Sob um desabamento anunciado antes mesmo que saibamos os limites e fronteiras dos pequenos ambientes aos quais somos expostos, notamos que não há qualquer espaço para correntes, mergulhos, conchas ou peixes. Atravessada pelo caráter impositivo do tempo contemporâneo que nos atropela e impede a existência trajetórias pessoais que resistam à uma balança e medida racionais,  a vida ali se esforça para que, nos beirais das janelas escassas, ainda seja possível a persistência, a invenção e o afeto em mares fabulados em espaços que sufocam.

         “Urgente” se constrói, recupera e lembra os gestos simples. Diante das sirenes e do cronômetro que são o peso inexorável da realidade cuja fuga é impossível, a peça retoma o que é ainda inventado pelo alcance das mãos: organizar arquivos, armar-se de regadores, construir gêmeos de papel, mudar, costurar roupas que não as nossas, observar travessias para que a coragem mesmo de continuar nasça. A comunalidade que une os personagens é, pelas ironias dos hábitos que nos encerram em rotinas cada vez mais auto-centradas, possível apenas quando as trajetórias e as questões irresolutas, amontoada pelos anos, tornam-se o reconhecimento que o envelhecimento atravessa a todos. Podemos, ainda, cantar um samba baixinho, aprender a sobreviver colorindo a solidão com móbiles e aniversários de canções gravadas, dizer a nós mesmo que o tempo para resgatar a memória da mãe é sempre bem menor que o amor, o amor que nos complexifica, que não pode caber. A busca por ultrapassar os limites é um dos poucos gestos revolucionários que ainda resta. Um dos personagens anuncia que a passagem por ali é temporária: há o sonho do resort. É preciso ser maior que o corpo, alimentar a vida, desejar um filho.  É preciso sonhar para que isso nos conforte. É preciso poder, ainda, ter o sonho de viver a fantasia do carnaval e a alegria que nos descanse de uma vida ordinária e corriqueira em que a mais dura tarefa seja amanhecer, todas as manhãs, sendo ainda a pessoa que nos acompanha desde o nascimento. A pessoa que nos olha com 50, embora nossos sonhos de euforia sejam ainda dos meninos de cinco, dez anos que imitam trios elétricos como o momento em que a identidade – e a culpa e responsabilidade que trazem – podiam se diluir entre a beleza e a partilha.  É preciso conseguir que os pianos abandonados por falta de espaço na vida que se abriga em apartamentos pequenos e práticos não se silenciem. É ainda preciso recorrer à música alta.

          Se a urgência e a vida que já foi – e a opacidade daquilo que virá – são atravessados pelo trabalho, ali vemos que o que é produzido e ganho não apaziguam a angústia que perpassa os que estão ali. O dinheiro é como essas sementes árduas que, jogadas ao solo, não o penetram, fecundam-no ou crescem em troncos vistosos onde será possível ter sombra e descanso. Apenas rebatem no chão, tilintam, ecoam como estilhaços.  É por meio do dinheiro, porém, que é possível ver a luz, que as rachaduras não mais se escondem,  que o gesto de reconstituir migalhas não nos alcança de forma estranha ou redutora.  Jogado ao chão, o dinheiro brilha, irradia a beleza de um carnaval de Mestre Sala simples, portando vassouras,  em que se reconhece a importância da alegria antes que a doença e o inevitável cheguem. Perto do que desaba e dos anos que conduzem às comemorações solitárias, é somente pela euforia que temos a tensão e os pontos de virada em que a viver não seja apenas a revisão do que já foi ou se baseie na espera angustiada pelo que será.

             Ao observar todos, encontramos Antônio, que se apresenta abertamente, conta-nos a sua história, explica-nos o que se passa. Antônio somos nós  – e não o somos, pelo mistério do que ele não sabe – próximos à arte, ao teatro, às perdas, aos medos, às reinvenções das narrativas de si. Testemunha distanciada do tempo e das suas histórias, Antônio é a esperança da vida que ainda não precisa encerrar-se porque o tempo dos homens – e de cada um – não pode ainda se cercear aos cômodos e ao que vivido. É o tempo sereno das rachaduras e dos desabamentos em que, vencidos pelo cansaço das batalhas exaustivas, agora podemos ter pouco, carregar apenas baldes velhos para catar moedas sem valor e se desnudar encontrando ator e personagem em palcos onde o olhar do outro é, também, o olhar de si acumulado (e resistente) ao tempo.

URGENTE

Foto: Carol Thusek

Arte: Estúdio Lampejo

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